Era sua primeira vez em um estádio de futebol. Incomodada que estava, ou melhor, desconfiada do marido que, todo santo domingo, saía logo após o almoço e alguns telefonemas, junto com os amigos, para voltar somente à noite fedendo cerveja e suor, às vezes feliz de dar cambalhotas, outras irascível como um doberman acorrentado.
Um belo domingo, serviu um almoço como poucos em tantos anos de casados, e sobremesa, e cerveja gelada, olhando vez por outra para aferir a satisfação do companheiro. Ao final, antes que este iniciasse seu ritual, sentenciou:
- Hoje quero ir ao estádio contigo!
O marido, como esperado, congelou. Estacou tão completamente, que a dita achou mesmo que este tivesse sofrido um mal-súbito, um AVC ou sei lá. E lá estava ele, mesmo depois de alguns minutos, a fitá-la como se olhasse através dela, para algum ponto impossível do infinito.
Pudera, toda mulher no estádio é pé-frio, pelo menos em sua primeira vez. Mas, deixem explicar-me melhor, antes que transpassem minha alma com suas ironias e talentos literários invejáveis: não é toda mulher, qualquer mulher. É a
sua mulher, a mulher do marido, entendem? Pode ser a namorada, ou a ficante, a peguete das quarta-feiras chuvosas, aquela... E, antes que fique pior, se é que poderia, pode ser também, no caso da torcedora, o marido, o namorado, até o Ricardão. Ali, não! Não é lugar para ela/ele.
Mas voltemos ao nosso amigo torcedor e sua esposa. Ele ali, terrivelmente congelado, e ela esperando a reação, irredutível – ele o sabia muito bem! - em sua pretensão,
hoje ela iria ao estádio, assistir a uma partida de futebol. “Mas, logo hoje? Por quê?”.
Era semi-final, justamente contra o rival azul da cidade, e o time vinha de uma recuperação memorável, após um início vacilante, flertando com a zona do rebaixamento, o time recuperou-se, encontrou o caminho e enfileirou onze jogos sem perder, classificou-se em primeiro, mandou o azarão para fora nas oitavas, goleou nas quartas, e... logo agora, que estava a um jogo de humilhar o rival... ela quer ir no jogo? Melhor: ela
vai ao jogo!
Ele conhecia aquela determinação inamovível desde que estavam prestes a completar um ano de namoro. Ela esperou, esperou, rodeou, deu indiretas, inventou jantares e almoços entre as famílias, e o cara, nada! Pois bem, marcou um almoço de domingo, bem na véspera de completarem um ano, mandou-o convidar os pais, e assim foi feito.
Chegando à casa da moçoila, ela recebe-os no portão, com um sorriso indecifrável no rosto, ao mesmo tempo largo e matreiro, e, após os cumprimentos de praxe, convidá-os a entrar. Os pais do namorado vão na frente, ela enlaça-o pelo braço e enfia uma caixinha no bolso. Surpreso, olha para ela, que mantém o mesmo sorriso matreiro e – agora sabe! - o mesmo olhar deste dia de jogo. Nem preciso perguntar, sabia o que havia dentro daquela caixinha de pelúcia preta e o que deveria fazer antes do almoço. O fruto derradeiro deste almoço está ali, ao lado, sentado no cadeirão tentando balbuciar suas primeiras palavras, sem entender o que se passa.
Pois bem, passado estes instantes de hesitação, agora já consciente que nada haveria de fazer, eis que levou-a ao estádio, mas desta vez sem os telefonemas para os amigos. Isto seria demais! Enquanto arrumava-se para sair, gritou várias vezes para o marido, todas sem resposta:
- Meu bem, não vai atender?
O jogo transcorria, como era de se esperar, disputado, truncado, até sangrento em alguns momentos. Sem entender nada do que acontecia, espiava a aflição do marido que roía unhas e grunhia ao mesmo tempo. Em um dos lances mais ríspidos, perto do final do primeiro tempo, uma entrada mais dura do zagueirão e o atacante voa, dando uma pirueta improvável, rodopia no ar e cai de costas. O estádio vem abaixo, em vaias, gritos e xingamentos. O tempo fecha, os médicos entram em campo juntamente com a turma do deixa-disso. Alheia à gravidade do momento, vê neste breve interregno a chance de fazer a pergunta inevitável:
- Meu bem, por quê não dão logo uma bola para cada time?
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Lembro-me desta estória toda vez que vejo, no campo, o atacante colorado Adriano. Este rapaz deve ter algum trauma de infância, é bem provável. Não entrega a bola nem que Deus baixasse no gramado e o ameaçasse com o eterno fogo infernal. Nem que sua alma ardesse entre os apenados para todo o sempre, este entregaria a bola. Fosse um Mirandinha, os sãopaulinos mais antigos haverão de lembrar-se, ou um Ronaldo Nazário, para os mais jovens, até entenderia. Ou, pelo menos, tentaria.
Mas o rapaz é ruim de bola. Ruim, não. Simplesmente não tem a aptidão física ou técnica necessária para pegá-la, lá atrás, e sair enfileirando os adversários. Invariavelmente, pega e fica com ela até perdê-la, sem sequer procurar um companheiro melhor colocado.
Alguém, no Beira-rio, já deveria ter tido a idéia de levar, escondida entre os uniformes, uma bola reserva. Assim, quando o treinador chamasse Adriano para o jogo e este estiver ali, na beira da grama prestes a entrar, este alguém sussurraria seu nome, jogaria a bola reserva em sua direção, com a necessária e expressa ordem:
- Tome, esta é só sua!